Razão ou emoção? Talvez uma das mais antigas lutas da humanidade... o melhor mesmo é tentar equilibrar as duas

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Sinto-me insultada na minha profissão!



Eu sou uma adepta das novas tecnologias e desde há um ano para cá que tenho estado atenta à investigação que se tem feito sobre o uso de aplicações na área da saúde, principalmente, na área da mudança de comportamentos e adoção de um estilo de vida saudável. Há resultados realmente bons, por exemplo, no campo do combate à obesidade infantil com crianças e adolescentes a aumentarem a ingestão de fruta, água e legumes e a praticarem mais exercício físico diariamente. No entanto, estas aplicações servem de apoio a uma intervenção e nunca sequer se equaciona a questão das mesmas virem a constituir-se como a intervenção por si mesma. O contacto humano e o desenvolvimento de uma boa relação terapêutica são fundamentais para que, inclusivamente, a pessoa se sinta motivada a usar a aplicação. 

Pois que me vem este engravatado com ar pimpão de quem acha que inventou a roda, anunciar uma das maiores barbaridades que ouvi na minha profissão nos últimos tempos! Estou ansiosamente à espera da justificação do Sr. Paulo Macedo à Ordem dos Psicólogos, a qual afirma em comunicado, ter sido apanhada de surpresa por tal espasmo de idiotice. 

Vejamos: 

1)  É certo que os smartphones vieram para ficar. Mais de metade da população portuguesa, a partir dos 10 anos de idade, já usa smartphones, o que se traduz igualmente nas vendas dos mesmos aparelhos, com um aumento, em 2014, de 24% em relação ao ano anterior (Fonte: IDC e Jornal de Notícias). No entanto, é preciso que se saliente que a faixa etária com maior utilização destes aparelhos é de 15-24 anos, o que em nada corresponde à faixa etária que maioritariamente utiliza os Cuidados de Saúde Primários no SNS. Além do mais, não basta só ter um smartphone. É preciso perceber que utilização é que as pessoas fazem deste tipo de aparelhos. Um estudo do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto revela que a pesquisa de informação na internet aumentou com estes aparelhos, mas que a maioria ainda usava os smartphones somente para fazer chamadas e enviar mensagens. Portanto, o uso de aplicações ainda passa ao lado de muita gente.

2) Atualmente, muitos dos problemas de depressão advêm das dificuldades económicas que se fazem sentir. Ora bem, se as pessoas mal têm dinheiro para pagar as contas na farmácia, renda da casa ou mesmo para se alimentarem, comprar um smartphone estará, sem dúvida, na lista de prioridades destas pessoas. Também aqui se vê o ridículo desta medida: para que seja implementada é necessário que haja condições para a mesma acontecer. Ora, não me parece que um SNS que mal consegue sobreviver, vá começar por aí a distribuir smartphones a todos os deprimidos que aparecem no sistema. Ou será que também vão passar a ser comparticipados? E porque não passarem a ser vendidos nas farmácias? 

3) De acordo com o que pude ler até ao momento, parece que esta maravilha será "prescrita" pelos médicos de família (já agora, o que tem a Ordem dos Médicos também a dizer sobre isto) e posteriormente monitorizada pelos mesmos, ou por enfermeiros ou por psicólogos (ai sim?!). Ora bem, eu não tirei medicina e portanto não me meto no trabalho dos senhores doutores. De maneira que fico extremamente contente por, mais uma vez, ver aquilo que deveria ser o meu trabalho e para o qual andei 5 anos a estudar (já agora numa instituição pública, tendo por isso o estado contribuído para a minha formação), ser substituído por outra profissão que está sem dúvida preparada para fazer psicoterapia. É que eu nem percebo porque é que ainda existe o curso de psicologia ou uma Ordem de Psicólogos Portugueses se, pelos visto, existem outros profissionais perfeitamente capazes de fazer o nosso trabalho. Além do mais, estes mesmos médicos de família que se encontram perdidos entre SAMs e afins vão, sem dúvida, ser adeptos ferverosos da prescrição de aplicações de telemóveis. E já agora, mais quantas horas de trabalho serão acrescentadas ao horário dos profissionais de saúde para poderem monitorizar os seus doentes? É que parece-me tremendamente desagradável estar na consulta de planeamento familiar de perna aberta para ver se está tudo bem com a minha saúde genital e de repente ter o senhor doutor a dizer "olhe aguente aí mais um bocadinho que tenho uma mensagem de um deprimido a dizer que se vai matar".  

4) Gostava mesmo muito que este senhor me explicasse esta coisa dos módulos e que me demonstrasse a evidência científica dos mesmos, quer em termos de eficácia, quer em termos do tempo de duração dos mesmos. É que "tratar" uma depressão em dois meses parece-me algo realmente prático, mecânico e económico! É que se este senhor descobriu a fórmula mágica da intervenção na depressão eu gostaria muito que ele a partilhasse com o mundo. Além de que, agrada-me a ideia de ver os deprimidos tratados que nem "carne para canhão", num sistema redutor das especificidades de cada doente. E depois venham-me falar de desumanização e despersonalização dos cuidados de saúde... 


5) Fico também curiosa como é que esta aplicação consegue resolver o problema da ideação suicída, muito característica na depressão. "Já tomou a sua medicação hoje?" "Sim, sim, acabei de tomar 20 comprimidos da embalagem que o Sôtôr me indicou, portanto se eu não responder à aplicação nos próximos tempos é porque se calhar fui só ali morrer um bocadinho e já venho". E porque uma aplicação vem sem dúvida combater o isolamento social, igualmente característico nestes doentes. E em oito semana vai realmente devolver o sentido e objetivos de vida à pessoa e transformar radicalmente a sua vida. "Parabéns! Passou positivamente em todos os módulos. Deixou de ser deprimido. Já pode dar descanso ao seu novo amigo virtual e passar a viver."

6) Por fim... e no meio disto tudo, o que é que acontece a todos os outros que também sofrem de perturbações mentais, como a ansiedade? Ou perturbações de somatização? Ou perturbações aditivas??? E é com estas medidas que o nosso governo quer diminuir o desemprego? Arranjem-me já um smartphone, que eu vou deprimir, mas não se preocupem que daqui a oito semanas estou fina e fresca quem nem uma alface.


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